Fui acordado com o sacolejar do ônibus saindo da estrada para sua quarta parada do dia. Já havia lido boa parte do meu livro comprado na Rodoviária do Tiête, mas desde que anoiteceu tinha resolvido tentar dormir para abreviar as 23 horas de viagem. Essa parada tinha um tempo maior para troca de motoristas e limpeza do ônibus. Por isso mesmo, fomos todos expulsos de nossos assentos executivos às duas da madrugada, com ou sem vontade de dar uma passada no restaurante.
Estávamos em Governador Valadares, praticamente na metade do caminho entre São Paulo e Vitória da Conquista, meu primeiro destino. Dali eu deveria ainda tomar outro coletivo até Rio de Contas, minha porta de entrada na Chapada. O que poucos sabem é que a região que leva esse nome tem cerca de 50 municípios e começa 150 km ao norte de Vitória da Conquista. Foi essa descoberta que facilitou a minha aventura pela região e também a primeira de bike.
Fiz as contas e tudo ficou viável. Só precisaria ter paciência para um dia no ônibus. Comecei a fuçar em Curitiba por alforjes e malabike. Já que o resto eu já tinha do meu tempo de montanhismo. A bike era uma MTB Caloi com 21 marchas que usava nos passeios ao redor de Curitiba. Na época eu não tinha a menor ideia da relação de marchas para aliviar o peso nas subidas. Como sempre acompanhava o pessoal com magrelas equipadas com Deore ou Alívio, achei que estava mais que preparado. Até estava, só que com uma megarange eu poderia ter sofrido menos em algumas subidas. Mas ninguém havia dado a dica e eu também não desconfiei que poderia arrumar um equipamento melhor. Era aquilo que tinha em mãos e foi com ela que fui. E voltei.
Dezoito horas de ônibus depois, o dia começa a raiar e a paisagem no norte de Minas Gerais se revela anunciando novos mundos a descobrir. Mais quatro horas e desembarco em Conquista para descobrir que teria que esperar até o meio da tarde para embarcar para Rio de Contas. Deixei para o dia seguinte e aproveitei para conhecer a cidade.
No dia seguinte lá estava eu ansioso para finalmente botar os pés na Chapada. A empresa que leva interior adentro se chama Novo Horizonte. Achei que tinha tudo a ver, pois estava ali justamente para isso, conhecer um novo lugar e de uma forma diferente: de bike. Só não contava que a aventura iria começar num ônibus que tava mais pra velho horizonte.
O distinto saiu da rodoviária com metade da lotação, o que me pareceu sorte, pois não tinha ar condicionado. Alguns quarteirões depois, ele aponta numa esquina apinhada de gente e com quiosques com o logotipo da empresa. Foi aí que me dei conta que estava em outro Brasil. Foi entrando gente e mais gente que optava pela rodoviária paralela para não pagar taxa de embarque. Em minutos me vi num coletivo paulistano em hora de rush. Como estava acomodado e só iria descer no fim da linha achei que estava seguro e era só esperar.
A viagem começou e assim que começaram a aparecer as porteiras de fazendas foi um tal de parar e catar mais gente como nunca havia visto antes. “Um passinho pra trás gente” gritava um caboclo da frente pra entrar mais uma senhora com sua sacolinha. Quando achei que tínhamos rodado uns cinquenta quilômetros, o motorista parou numa porteira sem viva alma e sem que alguém tivesse puxado a cordinha. Saiu ele com um regador na mão para pedir água na casa além da porteira. O motor estava fervendo. Isso mesmo, faltando ainda 100 km para a minha aventura começar e eu já estava o meio de uma muvuca sem ter o que fazer. Resumindo, cheguei ao meu destino 4 horas depois do previsto, contando umas 4 paradas para saciar a sede do coletivo e uma infinidade de paradas para o sobe e desce. Fiquei com a sensação de que mais de cem pessoas passaram por aquele ônibus em 150 km de trajeto.
No dia seguinte acordei cedo para conhecer a cidade que mal tinha visto na noite anterior. Rio de Contas, segundo contam os habitantes, foi a primeira cidade planejada no Brasil. Apareceu na época do garimpo e por lá você ainda vê parte do que foi uma estrada real usada para escoar a riqueza encontrada. Passeio o dia explorando os arredores e percebendo que pedalar pelos distritos da cidade já seria uma aventura e tanto. Mas, como meu objetivo era seguir em direção ao parque e conhecer ao menos Mucuge e Igatu, parti no dia seguinte.
Ao arrumar a bike no dia seguinte me dei conta de que estava sendo mais aventureiro do que deveria. Eu não havia testado a bike com a carga completa uma única vez até aquele dia. Ao inclinar a magrela para montar quase que ela vai ao chão. Foi aí que vi que havia exagerado um pouco. Mas quando rodei o pedivela o peso sumiu e fui. O objetivo do dia era almoçar em Marcolino Moura e dormir em Jussiape. Acabei cumprindo o proposto, mas não exatamente como planejado.
Logo na saída, paro para mais uma foto da praça central da cidade com a luz matutina e, do nada, aparece um baiano para bater papo. Isso é quase regra em cicloturismo: mais que 30 segundos numa praça fotografando ao lado de uma bike com alforjes e lá vem o “vem de onde, vai pra onde”. Foram 20 minutos de papo, pois o rapaz era fotógrafo na cidade e ao saber que eu fazia isso também como profissão, foram várias perguntas. Detalhe: o cara estava em um andador e com um soro espetado no braço. Ele se recuperava de uma cirurgia. Acho que foi isso que me fez não tentar fugir antes para começar logo a pedalar.
As estradas entre esses locais são de terra vermelha com direito a poeirão. Nesse canto do Brasil, quase não existe plano: ou você está subindo ou descendo. Nada muito grave, mas ou é vento ou muito suor dependendo do sol. E nesse dia ele estava castigando. Deu meio dia e nada de aparecer o tal Marcolino. A fome apertava e decidi fazer uma boquinha com o que tinha no alforje. Bolacha salgada, doce e nada de aplacar a fome. Foi quando olhei pra cima e vi que havia parado na sombra de umas mangueiras que ladeavam um campo de futebol. Subi o barranco e colhi umas três mangas coquinho que pareciam usinas de açúcar. Em minutos já estava renovado e pedalando.
Apareci para o almoço de verdade só às duas da tarde e fiquei sabendo que a estrada pela frente era muito mais tranquila do que o morro que tinha atravessado na manhã. Mesmo assim só cheguei a Jussiape no fim do dia.
Para o segundo dia estava reservada a prova de fogo de toda viagem. Subir para o nível da chapada. O grande drama era a rampa para o Brejo de Cima. Sabia por relatos de quem fez o caminho contrário que ela era uma ladeira de uns três quilômetros que faria a festa de qualquer praticante de downhill. Fazer no sentido contrário me incomodava. Ao longo de toda manhã pedalando ao encontro do purgatório fui tentando ser o psicólogo de mim mesmo: vamos fazer o esquema “Casas Bahia” dividir em suaves prestações, se apertar empurra, uma hora chega, etc. No fim foi tudo isso.
Cheguei ao pé do morro antes do meio dia. Resolvi almoçar em baixo de dois pés de Umbu e esperar o sol dar uma trégua antes de encarar o meu destino. Energizei-me como pude com umbus tirados do pé e à uma da tarde parti morro acima.
A rampa é longa, reta e sem sombras. Sem uma relação que realmente resolvesse o problema, só durei uns trezentos metros pedalando. Nesse ponto, as prestações do meu carnê já eram infinitas. Parti para a empurraterapia e foi nesse ponto que tive vontade de jogar metade das coisas fora. A bike saía de lado devido ao peso. Como levei uma fita de escalada para qualquer imprevisto, passei a puxar a bike com o ombro pelo selim enquanto os braços guiavam. Foram quase três horas para esses três mil metros. Inúmeras paradas, mas só deixei suor pelo caminho.
Brejo de Cima é um daqueles lugares no mundo que a gente não esquece. Não tem pousada, não tem restaurante, não tem chuveiro quente, mas tem um povo maravilhoso. Indicaram o galpão na praça central para montar a barraca. O local é usado para as festas locais. Enquanto me instalava percebi que foi chegando gente, um daqui e outro dali, se encostando no palco. Achei estranho de início até perceber que eles queriam só bater papo. E foi isso que fiz até a hora de dormir.
A saída do Brejo de Cima ainda exige um pouco de perna. Mas depois de dois dias de treino, até que não foi difícil chegar ao platô onde a paisagem muda e o clima fica mais ameno. Estava percorrendo uma estrada de terra paralela à BA-142, passando pelo meio de fazendas e pequenos povoados. Só acessei o asfalto bem perto de Mucuge.
Pelo caminho, descobri que as vacas gostam de casca de banana ao fazer meu lanche ao lado de uma bica d’água onde elas vinham beber. Ao me ver passando, um morador quase me agarrou: me fez parar e entrar em sua casa, comer cajica e bater papo. Isso é o que a gente mais faz em cicloturismo. Bater papo.
Chegar pelo sul na região do Parque da Chapada Diamantina é um visual genial. Os paredões atraem tanto a atenção que o pedal pela rodovia passa a ser um risco. Mucugê é uma das cidades que compõe o roteiro básico de quem visita o parque ao lado de Igatu, Andaraí e Lençóis.
Fiz de Mucuge a base para explorar o lado sul do parque, pois achei que já tinha ido longe demais com uma bike de 21 marchas super carregada. Essa conclusão veio depois de experimentar a trilha entre a pedreira e Igatú.
A trilha já foi parte de uma estrada real e, no sentido que fiz, foi um downhill intenso. Como a sequência do pedal seria em trilhas parecidas, resolvi passear pelo local sem carga. A parir de Mucuge dá pra alcançar o Poço Encantado, o Instituto de plantas do cerrado, várias cachoeiras e, claro, Xique Xique do Igatú, a cidade mais exótica do pedaço.
Em Igatú, você encontra um museu de esculturas a céu aberto em uma rua toda com casas de pedras. As construções são do tempo do garimpo e foram assim construídas porque pedra não falta por ali. A sensação é que estamos em outro tempo.
Ficaram a vontade e a promessa de um dia voltar para dar a volta no parque a partir de Mucugê. Pelo lado leste, existem trilhas que exigem certa técnica de MTB e que dão acesso a Lençóis. Do outro lado são estradas de terras que passam por Seabra até fazer a ligação de volta com Lençóis. Seja qual for o sentido, pedalar pela Chapada é e sempre será uma aventura.
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