Também poderia ser o caminho simpatia
A simpatia começa pela praça de Amargosa, uma cidade cravada no Vale do Jiquirça. Foi nessa praça que começamos a percorrer esse caminho peregrino no interior da Bahia. A chegada até a cidade não foi muito tranquila. Resolvemos alugar uma Kombi para o trajeto. Ir de ônibus nos faria chegar lá no meio da tarde. Com a Kombi poderíamos começar a pedalar às 10hs. Aconteceu o contrário, o carro mais popular do Brasil resolveu ferver várias vezes nos atrasando em mais de 3 horas. Faltando um quilômetro para chegar à cidade, fomos ultrapassados pelo ônibus de linha que atende a cidade, o mesmo que inventamos de não pegar.
Voltando à simpatia, a praça da cidade é seu orgulho. Toda arrumadinha, colorida e impecavelmente limpa. Depois de registrar a credencial para garantir a estada no meio do caminho, rumamos atrás das setinhas. O começo do caminho é daqueles para animar qualquer iniciante: descida. A estrada acompanha um vale de um verde intenso e salpicado de vaquinhas, flores e vistas que consomem cartão de memória.
Depois de uma chegada tumultuada nada melhor do que começar um pedal com a ajuda da gravidade. Ao final da descida, continuamos acompanhando um riacho que vai nos apresentando fazendas antigas e mais paisagens de encher os olhos a cada curva. O trajeto para o primeiro dia estava programado para pouco mais de 25 km até Alto da Lagoinha. Mesmo começando no começo da tarde tudo parecia que seria tranquilo. Isso até acabar o primeiro vale e a estrada começar a subir para passarmos para a cadeia de montanhas seguinte. A rampa começa leve e vai agravando. Deu pra seguir sempre pedalando, mas o calor da Bahia em novembro, mesmo em certa altitude, faz você jorrar água pela pele.
Depois desse primeiro cartão de visitas, o sobe e desce foi constante. Morros menores, mas em quantidade para fazer você parar de pensar que o próximo vai ser o último. O melhor a fazer é assumir que eles agora fazem parte da família e se acostumar. Porém, somando essa turma com o começo de dia agitado, mais uma alimentação irregular pelo horário, o cansaço apareceu para algumas pessoas mais cedo e o atraso foi inevitável.
Chegamos à Lagoinha com as lanternas acesas há mais de hora e alguns extenuados com cara de poucos amigos. Mas como é Bahia, não tem como ficar de mau humor por muito tempo. Ainda mais depois de descobrir que a casa escalada para nos receber estava com um almoço-janta maravilhoso à nossa espera. Nesse povoado não tem hotel, pousada aqui só quando você faz a inscrição no Caminho e eles avisam o responsável que aciona uma das casas de plantão para receber os peregrinos. Depois de avistar o banquete à nossa espera, a fome resurgiu das profundezas botando o cansaço pra escanteio e acabei tomando o banho mais rápido da minha vida. Bastou todos se sentarem à mesa que o humor voltou e os planos para a jornada no dia seguinte viraram assunto.
Lagoinha foi colocada como parada porque é a partir deste povoado que se tem acesso a uma gruta no alto de um paredão onde os fiéis ergueram uma capela e de onde se tem uma das mais belas vistas dos vales da região. Seja pela vista ou pela fé, no dia seguinte, não antes de outra esbórnia no café da manhã, fomos morro acima. Mas, como nesse mesmo dia teríamos que avançar no caminho, essa perna que consome um dia da peregrinação foi feita com apoio local e motorizado. Subir pedalando é pra quem tem muitos pecados a pagar. A estradinha é úmida, se enfia por pequenos morros forrados de cacau antes de apontar para o céu como se fosse uma rampa de foguete. É desafiadora e, para não atletas, ela consome a energia das pernas por um dia.
Conseguimos voltar por volta das onze com fome de pegar a estrada novamente, mas adivinha só. Tinha outra mesa repleta à nossa espera. Acho que o pessoal pensou que precisávamos de mais combustível para não chegarmos à noite na próxima parada novamente. O objetivo do dia era Jiquiriça, com passagem por Mutuípe. Uma pousada ao lado de uma cachoeira que, nos fins de semana, recebe cerca de 80 ônibus de turismo forrados de turistas, ou qualquer outro nome que você queira dar para quem passa o dia bebendo ao lado do rio. O trajeto segue por estradas rurais, no entanto, há uma estrada asfaltada que liga as mesmas cidades e segue, claro, pelo meio do vale, evitando subidas. O que pode parecer a solução de todos os problemas simplesmente te afasta do melhor da viagem: as pessoas que você encontra em meios às plantações de cacau, nas vendas da estradinha ou na porta das casas dando alô para os seres estranhos passando de bike. Essa conclusão veio justamente porque no segundo dia experimentamos as duas realidades. Ao sair do Alto da Lagoinha, usamos uma estrada rural e a viagem foi rica. Mas ao passarmos por uma cidade, e por conta do desgaste no dia anterior, decidimos ir pelo asfalto para evitar mais desgaste ainda. Resultado: a viagem foi muito chata. Por sorte, foi muito mais curta do que imaginávamos. Por terra teríamos mais de vinte quilômetros, pelo atalho, foram só oito. Chegamos ao destino a tempo de ver a saída das últimas duas dezenas de ônibus da turma que passou o dia na cachoeira. Por sorte a pousada já tinha um quarto liberado no meio da tarde para que pudéssemos nos esconder até que a horda de farofeiros deixasse totalmente o lugar.
Para a última perna de nossa jornada, uma decisão foi tomada: nada de estrada de asfalto. Mesmo a mais desgastada do grupo queria o melhor da viagem, encontrar pessoas. E foi o que aconteceu. Mais uma vez, ir pela terra significou muitos morrinhos pelo caminho. A cada cinco quilômetros, mais ou menos, mudávamos de vale vencendo uma lombinha que sugava um pouco da energia de todos. Isso não é novidade, mas o fato de ser no interior da Bahia e numa segunda feira esse fato tomou outra dimensão. Como não há infraestrutura de turismo nessa rota, achar onde comer foi um problema por ser uma segunda-feira. As vendinhas das quais nos falaram eram na verdade bares que abrem mais aos fins de semana. Foi ao encontrar a segunda fechada que entendi por que em Lagoinha o pessoal nos serviu tanta comida. Outra constatação foi que para enfrentar a geografia do Vale do Jiquiriça, barrinha de cereais e essas coisinhas que levamos em trilhas não resolvem nada. Sem comida de verdade, a coisa começa a complicar no começo da tarde. Especialmente para quem sofre mais quando a taxa de açúcar cai muito, como foi o caso da Itana. No meio da tarde ela já estava pedindo mais que água.
O ritmo do pedal já estava bem lento e com paradas cada vez maiores. E foi numa dessas paradas, faltando menos de 10 km para acabar o trecho que percebemos que a solução estava bem ao nosso lado a todo o tempo: cacau e banana. Ao ver Itana meio desconsolada sentada no barranco da estrada, uma senhorinha não teve dúvidas, interrompeu sua tarefa para arrumar algo para nos oferecer. A casa de Dona Mariana é pobre, muito pobre. Lá ela vive com o marido, filhas e netos. Contei umas dez pessoas. Todos muito tímidos e ao mesmo tempo curiosos. Em cima do sofá, um cacho de bananas com a cor ainda verde foi a primeira coisa da qual lançou mão. Itana encarou meio a contra gosto, pois achou que a banana estava verde. Enganou-se feio. Mesmo ainda sem o amarelo ao que estamos acostumados, aquela estava docinha. Eu mesmo não acreditei e experimentei. Nesse meio tempo, só vi o patriarca da casa sair de facão na mão e pés descalços. Cinco minutos depois ele reaparece da roça com meia dúzia de frutos de cacau abraçados pela camisa e joga tudo no terreiro. Com a habilidade de um sushiman do sertão, começou a romper os frutos sem sequer encostar nas amêndoas. Nisso D. Mariana já vai distribuindo com a recomendação “come minha fia, vai chupando a polpa que faz bem”. Eu não fazia ideia de que se podia comer a polpa que envolve as sementes, que é de onde sai o cacau de verdade. Em segundos cada um já tinha o seu na mão e olhando para o chão pra ver se ia ter mais pra repetir. O gosto é suave, se assemelha ao umbu dependendo da cor do fruto. O vermelho é mais doce. Era o que faltava para podermos fazer os quilômetros restantes numa boa. É verdade que a fome é o melhor tempero, mas saí de lá feliz da vida por ter experimentado e gostado de chupar cacau.
Ubaíra estava realmente próxima. Aliás, esse trecho não era tão grande assim, mas por tudo que aconteceu parecia que tínhamos feito uns cem quilômetros. Antes da D. Mariana, encontramos pelo caminho um professor de ensino fundamental, o Gilson, que anda todo dia seis quilômetros para ir dar aula, isso só pra ir. No caminho ele vai recolhendo os alunos pra levar à escola e na volta devolve cada um às suas casas. E ele nem é da região, mora em outra cidade e nos fins de semana viaja pra ir ver a namorada.
Antes do Gilson, numa passagem de um morro pra outro, ficamos em dúvida quanto ao caminho. Em uma bifurcação, optamos pela estrada mais larga, mas que cem metros depois parecia levar ao lugar errado. Para nos certificar, começamos a chamar por alguém numa casa, mas nem deu tempo, pois, atrás de nós, montado em seu jegue alado, apareceu um lavrador para nos salvar. Chegou ofegante dizendo que do outro morro estava nos observando e viu que tínhamos errado o caminho. Não pensou duas vezes e fez a bunda do jegue arder a chicotadas para nos alcançar. Muitos acreditam em anjos e super-heróis, e eles existem mesmo. No Vale do Jiquiriça eles poder ser a mesma pessoa e vestem roupas rasgadas em vez de capas vermelhas, montam jegues e aparecem enlameados da roça, mas o serviço é o mesmo: nos salvou de uns belos quilômetros errados.
Na cidade de Ubaíra uma parada é obrigatória: a casa do fundador do Caminho da Paz. O ponto final, o Projeto Semente, fica ainda 19 km mais a frente. Chegamos pouco depois do meio da tarde e logo fui atrás de comida pra reabastecer as pessoas a fim de garantir o resto do dia. Mas nem foi necessário. Com a oferta de carona em uma camionete até o projeto, as pernas de vários ali amoleceram de vez e o povo resolveu relaxar. Como teríamos de fazer esse mesmo trajeto para sair do sítio no dia seguinte, a desculpa estava na ponta da língua: fazer a mesma estrada duas vezes é bobeira, deixa pra amanhã. E assim foi.
O Projeto Semente é uma pousada no estilo alternativa e espiritual. A comida é vegetariana e cultivada no local. Há espaço pra tudo e a ordem por lá é relaxar. Não precisou dizer duas vezes. Ficamos até o almoço do dia seguinte aproveitando o lugar. A volta foi tranquila, pois quase todo o trecho é descida no sentido da estrada. Acho que foi até por isso que os baianos da turma fizeram corpo mole quando apareceu a carona, eles já sabiam da manha. Chegando ao asfalto, só tivemos que esperar e parar um ônibus no grito para voltar a Salvador.
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