Ele sonhou com a Terra do Fogo e aproveitou para pedalar por um ano pela América do Sul
Ele alimentou sua viagem desde adolescente, sonhou, planejou e finalmente partiu para oito meses de pedal. Voltou dias depois com o pulso quebrado. O que parecia o fim de uma loucura para sua mãe, foi apenas um atraso de quarenta dias.
Para compensar, esticou o pedal por mais cem dias além dos 250 planejados. Já que estava no Perú, porque não esticar até o Acre, e de lá, porque não pegar um parco em Manaus e conhecer o Amazonas.
Foram 365 dias de pedal, dois anos planejando, quatro anos entre o sonho até lançar o livro sobre a viagem. Inúmeros amigos, vários países e mais de 15 mil quilômetros pedalados e quase 20 mil viajados. Conheça um pouco mais da Volta Sulamericana de Thiago.
Quando foi a primeira vez que você teve a ideia de viajar de bike?
Eu tinha essa idéia desde a adolescência. Me lembro de já ter desenhado mapas, especialmente do cone sul. Acho que a primeira vez que pensei sobre isso foi com uns 15 anos. Na época ainda não conhecia ninguém que tivesse feito longas viagens de bicicleta. Acredito que não fui influenciado. Se fui, não me lembro.
Logo de cara você já imaginou uma volta pela América ou mundo, ou começou pelas pequenas?
Minha fantasia era conhecer a Terra do Fogo. Eu sempre quis ir até o “fim do mundo”. Isso me fascinava desde a infância. O plano de viajar de bike veio apenas abrilhantar o desejo de conhecer aquela região.
A ideia da Volta Sul Americana surgiu como?
Como eu já tinha a idéia básica (até um pouco infantil) acabei, 10 anos depois, criando um projeto bem definido, com metas específicas de lugares que gostaria de ir. O nome Trilha Sulamericana eu escolhi em 2008, poucos meses antes de sair pelas estradas. Planejei viajar por 8 meses e prentendia percorrer cerca de 13000 km, mas acabei ficando 365 dias na estrada, viajando 19900 km, destes, 15378 de bicicleta. O percurso já era bem parecido, iniciando no sudeste brasileiro, indo até a Terra do Fogo e depois até o Sul do Peru. Durante os preparativos e treinos eu mudei os planos e pensava em seguir até o Equador, antes de descer o Amazonas. O percurso final foi um pouco encurtado, quando eu já estava no Peru e decidi ir direto ao Acre.
Quanto tempo levou entre a vontade e o dia de partida?
A vontade se transformou em sonho, o sonho em meta e a meta em planejamento efetivo. Efetivamente, desde a hora que decidi realizar a viagem até o dia da partida foram uns 2 anos.
O meu plano nunca foi modesto. O livro já era meta deste o início. Desde o início dos treinos em agosto de 2007, até agosto de 2011, quando publiquei a história, foram 4 anos. A viagem de fato durou de novembro de 2008 a novembro de 2009.
O sua mãe disse quando você contou seus planos?
Ter o apoio dos maus pais foi fundamental. Ainda no início de 2007, quase um ano e meio antes da partida, eu reuni os dois e contei dos meus planos. Eles me apoiaram na hora. Minha mãe até se emocionou um pouco, claro, já imaginando como seria duro pra ela.
O começo da sua viagem teve um contratempo grave. Como foi?
Fraturei o punho esquerdo, luxei o cotovelo, tive uma pancada muito forte no joelho e escoriações por quase todo o corpo.
Eu estava a 150km de casa, no segundo dia, nas proximidades da cidade de Ventania, no Paraná. Durante uma descida atingi cerca de 50km/h e então por uma distração eu caí. Acho que o que me derrubou foi um desnível entre a pista e o acostamento.
Voltei pra casa de ônibus e só pude lamentar e chorar um pouco.
Na hora que você percebeu que teria que voltar pra casa, o que passou pela cabeça?
O acidente foi uma ducha de água fria, mas em momento algum eu desisti. Sabia que era questão de tempo voltar para a estrada. Minha única preocupação era o tempo de recuperação, já que tinha que chegar à Terra do Fogo no verão. Se perdesse esta janela eu teria que esperar mais um ano e isso, sem dúvida, era um risco.
O que sua mãe falou quando você voltou e depois quando soube que iria continuar?
Minha mãe ficou aliviada, eu acho, quando voltei pra casa. Apesar dos ferimentos acho que ela pensava que eu tinha acordado e desistido do meu plano maluco!
Quanto tempo ficou fora, quantos países passou?
Se eu contar somente os dias corridos de viagem, ou seja, dias efetivos viajando, foram 365. Essa conta não leva em consideração os 52 dias de recuperação após a fratura e nem os 20 dias da pausa que fiz no meio do caminho. De fato, de bicicleta, foram cerca de 345. O restante foi navegado pelos rios Madeira e Amazonas. Pedalei pouquissimo em Manaus e Belém do Pará e isso nem foi contabilizado.
Percorri 6 países: Brasil (regiões Sul e Norte), Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e Peru. Foram mais de 230 localidades e cidades. Uma aula incrível de ciências humanas e geografia.
Quantos amigos fez? Chegou a contar?
Não contei exatamente. Encontrei mais de 200 pessoas, as quais conheço pelo nome. São de dezenas de países diferentes.
Tive 11 companheiros de viagem. Cicloviajantes que cruzaram meu caminho. Os mais importantes, claro além do meu amigo Martinho, que treinou um ano comigo e foi até Floripa, posso citar o frances Vincent Degove (45 dias) e o alemão Ralph Mertens (54 dias).
Qual a história mais engraçada da viagem?
Engraçada? Pelo menos uma dezena delas… Fica difícil escolher uma. O trecho abaixo eu copiei do meu livro. A primeira história que me veio em mente, quando acampei numa praia, nas proximidades do deserto do Atacama:
A noite estava tranquila. Parecia que não havia qualquer presença humana nas proximidades, então logo minha paz foi quebrada. Notei que havia alguma espécie de animal mexendo na barraca. Parecia tentar entrar por baixo da barraca. Assustei-me. De início me mexi para assustar o pequeno animal e pareceu dar resultado, porém alguns minutos depois tudo recomeçou. Saí da barraca para ver o que era, mas toda vez que eu saia o bicho desaparecia. Deveria ser algum animal pequeno e com certa inteligência, pois também mexeu no meu lixo que estava fora. Pensei que pudesse ser um pequeno mamífero. Assim as horas foram se passando e fui ficando irritado. Não conseguia dormir de jeito nenhum! Quem é capaz de dormir com algo tentando entrar em sua barraca? Então levei outro susto: depois de uma breve cochilada, ao abrir os olhos vi o animal do lado de fora do mosqueteiro da barraca bem próximo do meu rosto. Ele havia entrado entre o sobre teto e o mosqueteiro. Dei um grito alto de susto! Foi realmente pavoroso… Gritei e logo ri da situação. Era um pequeno rato com uma longa cauda. Enfim, graças a luz da lua, pude saber o que era e que se tratava de algo inofensivo.
O rato era teimoso, já que não desistiu um minuto sequer e só me deu sossego por volta das 5 horas da manhã, quando deve ter se cansado. Despertei por volta do meio-dia e quando retirei a barraca do lugar pude ver o resultado do trabalho do rato. Havia um túnel de uns 30 centímetros por baixo da barraca. Que bichinho insistente! Outra noite interminável!
Teve algum momento ruim? Chegou a pensar em desistir?
Não dá pra encarar uma viagem como esta sem esperar por momentos duros, mas a gente só aprende quando acontece mesmo. Selecionei outro trecho do livro, quando eu e Ralph acampamos a cerca de 70 km de El Chaltén, no sul da Argentina:
Nos alimentamos e cada um foi para sua barraca. As 00h50min da madrugada o vento ficou muito mais forte e mudou de direção. Passou a atingir minha barraca de lado. Foi ficando mais e mais intenso até o ponto de parecer impossível ficar pior, mas ficou. Aos poucos percebi que as minhas atitudes naquele momento seriam decisivas. Deitei-me no canto da barraca, entrei no saco de dormir e coloquei meus alforjes cheios em cima de mim para aumentar meu peso. Minha maior preocupação era voar ou ser levado por aquele vento. Se isso acontecesse estaria em maus lençóis.
O vento seguiu madrugada adentro. Às vezes parecia que havia cinquenta pessoas golpeando a barraca por fora. Realmente assustador! Para piorar, uma chuva forte começou. Aos poucos um pouco de água começou a entrar. Senti que meu saco de dormir estava ficando molhado. Então fui obrigado a mudar a minha postura, tinha que tentar fazer algo. Tinha que me proteger de alguma forma. Saí do saco de dormir, vesti minha calça e blusa impermeáveis. Minhas meias já estavam ensopadas, então decidi ficar sem meias. Durante a noite perguntava a Ralph se as coisas estavam bem em sua barraca, pois é importantíssimo manter-se seco nesse tipo de situação. Guardei tudo que necessitava de proteção e me sentei encostado na parede da barraca, segurando forte enquanto o vento só parecia piorar. Assim fiquei até as seis horas da manhã, quando o vento diminuiu e acabei pegando no sono. Despertei-me cerca de uma hora depois, deitado no chão da barraca, em meio a um pouco de lama. A situação foi extrema. Somente dormi quando já não suportava mais a situação. Realmente me vi em uma situação de risco real e senti medo de verdade. A noite havia sido tão estressante que tive dores de estômago. Dizer que tive uma noite horrível parece soar como eufemismo. Senti como se a dona morte quisesse me mostrar seu cajado. Arrepio-me só de lembrar!
No fundo, depois de cada situação como esta me sentia ainda mais forte. Sabia que estava sendo treinado e que depois de fatos como este poderia sobreviver a quase tudo. Tinha um sentimento de satisfação enorme. Era como se estivesse encontrando justamente o que queria, desde o inicio: descobrir meus limites físicos e psicológicos. Em nenhum momento durante esta noite cheguei a pensar que fosse hora de desistir.
Às vezes, quando conto essa história, me perguntam: “Mas você não desistiu?” e sempre rebato com outra pergunta: “De que adiantaria desistir naquele momento?”. É uma situação real e você simplesmente não tem escolha.
Realmente, desistir passou pela minha cabeça em algumas ocasiões, mas não é um video game, não dá pra desligar e ir tomar uma gelada. Voce está na estrada e muitas vezes depende só de voce mesmo. O dia sempre termina, por mais duro que tenha sido. Quando termina vem outro e aí a vontade de desistir não existe mais.
Mudou algo na sua vida depois da viagem?
Tudo! Um divisor de águas. Havia um Thiago antes e há outro agora. Não é possível descrever a minha vida ou imagina-la sem falar desta experiência. Penso nisso todo dia!
Tem planos para uma outra?
Olha, quem percorre 20 mil pode percorrer 40 mil… Como consequencia deste raciocínio posso dizer que a volta ao mundo me atrai bastante. Quem sabe um dia! Mas antes é preciso sonhar com isso. Ainda estou digerindo e entendendo tudo que vivi.
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