Uma viagem teste antes de enfrentar Santiago de Compostela
Era carnaval, era madrugada, mas nada de folia. O dia começava preguiçoso em Lages quando o ônibus chegou à rodoviária. A cidade dormia tranquila; nem sinal de foliões ou algo parecido. Na região sul, carnaval não é uma super festa, Santa Catarina segue o mesmo roteiro.
Foi pensando nisso que decidimos fazer ali nossa viagem teste antes de Santiago. Com 5 dias de folga e sem alvoroço de turistas, nos pareceu ideal pedalar de Lages até o Farol de Santa Marta seguindo o mesmo esquema dos peregrinos: Não marcamos hotel; apenas o roteiro a seguir. O objetivo era pedalar cinco dias seguidos para ver o que faltava e verificar se a minha parceria com a Regina Thurler resistiria a mais de 2 dias seguidos pedalando. Deixar para acertar arestas já na Espanha não seria uma boa ideia.
Para aproveitar ao máximo os cinco dias, decidimos pelo ônibus da madrugada. O resultado foi certo mau humor ao montar as bikes ainda na rodoviária sem ao menos ter tomado café da manhã. Senti que estava de pavio curto quando, com menos de um minuto de malabikes abertos e montando ainda a primeira bicicleta, já me aparece a tia da limpeza com a pergunta clássica: vão pra onde? Não tinha uma viva alma por lá e ela apareceu do nada. Respondi meio seco que ia passear. Logo depois me arrependi e me senti um idiota. Era falta de cafeína.
Mas logo em seguida percebi que a parceria ia funcionar. A Regina reapareceu do banheiro já toda paramentada de ciclista e resolveu entreter a multidão de três curiosos (eles brotam do nada) que nos metralhavam com todo tipo de pergunta. Enquanto isso, tive sossego para montar as duas bikes. Agora só faltava o café para o dia realmente começar.
O dia clareou e, com a luz, veio uma chuvinha para fazer com que o teste fosse realmente completo. O roteiro do dia era seguir para Painel e dormir em Urupema. Mas antes paramos numa padoca para o café e com ele veio o primeiro teste psicológico. Depois de sabatinar a Regina com todo tipo de pergunta, o dono do local simplesmente virou pra ela e disse:” Vocês são loucos. Vão ver, assim que voltar pra casa vai vender a bike pra nunca mais repetir isso” . E continuou na ladainha até que deixamos a padaria. Ele realmente ficou indignado com nossa proposta de pedalar os cinco dias de carnaval e ainda começando num sábado chuvoso e frio.
Passado o primeiro teste, seguirmos para Painel. Além do nome essa cidade não tem mais nada de interessante. É apenas cortada por uma estrada muito bem asfaltada em direção a Urupema e por onde quase não passa carro. Tudo seria perfeito se não estivéssemos subindo lenta e suavemente. No dia, subimos cerca de quatrocentos metros. Não houve uma subida daquelas de tirar o fôlego, mas praticamente todo o trajeto entre Painel e Urupema é subida.
Urupema é conhecida por ter uma cachoeira que congela, ser a cidade mais fria de Santa Catarina (apesar da fama de São Joaquim), ser a terra da maçã e ter apenas um pequeno hotel, cujo o dono fecha o estabelecimento no meio do carnaval e vai para uma festa com direito a rodeio.
Chegamos à cidade por volta das duas da tarde. A canseira já começava a pegar depois de uma noite mal dormida e 40 km pedalados. Depois de muito bater à porta do hotel, uma vizinha aparece e avisa que “o moço saiu e foi pra festa e só volta na segunda”. Como não havia opções, só nos restava seguir para Rio Rufino, 17 km à frente com uma serra no meio.
Só que antes de tomar rumo, Regina resolveu sair à caça de uma casa para usar o banheiro. Para meninas sempre é mais complicado. Com a chuva, a cidade parecia deserta. A vizinha que avisou sobre o hotel já havia sumido. Rodamos uns quarteirões até achar uma cabecinha em uma janela. Regina não teve dúvidas e lá foi com seu jeito carioca de fazer amigos do nada. Minutos depois sai ela da casa toda feliz e falando alto. Tinha descoberto uma pousada quatro quilômetros adiante numa fazenda de trutas. Era na direção contrária ao nosso rumo, mas mesmo assim resolvemos arriscar, pois não queríamos pegar mais uma serra naquele dia. Se desse errado, teríamos incluído mais oito quilômetros na planilha do dia. Deu certo. Além de confortável e barato, tivemos um jantar com trutas preparadas de várias maneiras. Ter planejado parar de pedalar no começo da tarde fez toda a diferença, pois fica mais fácil resolver problemas de estadia, como aconteceu.
Dia seguinte, a serra que dá acesso ao ponto mais frio do estado e à cachoeira que congela deixou de ser um fantasma depois de 8 horas de sono e um bom café da manhã. Rio Rufino foi alcançada antes do meio dia e Urubici, a parada do dia, no meio da tarde. Já com fama de turística, Urubici tem pousadas de sobra e deu até para escolher. Depois dos testes do dia anterior, até que foi bom ter um dia sem novidades.
A meta seguinte era descer a Serra do Corvo Branco. Já ouvira falar do local, mas não tinha a menor ideia do que esperar. Partimos sob uma chuva fina que produzia na estrada uma lama branca e fina. Parecia um mingau. Não atrapalhava a pedalada e até produziu fotos divertidas. Depois de dois dias pedalando nesse clima, já estávamos acostumados a tomar um banho de mangueira com bike e alforjes antes de entrar nas pousadas.
A manhã de pedal pelo retão que leva a serra até a descida foi divertida. Ganhamos maçãs no meio do caminho e a Regina foi fotografada como uma atração de safári. Um trio de casais passeando em dois carros passou por ela e de uma das janelas surgiu uma câmera. Ela só percebeu um flash e o carro acelerando depois. Claro que sobrou pra mim ouvir os impropérios que ela queria dirigir para a sedentária do carro. Ficou irada por ser tratada com uma lhama passeando pelos campos.
À tarde a coisa mudou um pouco. Quase sempre, antes de descer uma serra para o nível do mar, há uma subida até começar a descida de verdade. Mesmo sabendo disso, nos enganamos e esquecemos. Quando pensamos em descer em direção ao mar, só lembramos da ladeira e do vento no rosto. Acontece que antes da impressionante descida do Corvo Branco tem uma subidinha chata que acumula cerca de 400 metros de altitude. De novo.
No meio da subida eu fui o escolhido para o insulto de um sedentário em seu carro. Já começando a subir sou ultrapassado por um Uno vermelho pilotado por uma pessoa que valia por duas. Um aceno e lá foi ele. Minutos depois já no meio da subida, ele volta e agora resolveu parar: “Olá, muito bonito lá em cima no mirante. Vale a pena, mas a subida é pesada. Vocês vão ter que empurrar, mas vale a pena” foi seu discurso. Olhei pra barriga do infeliz e para a infeliz da mulher dele que se contenta com pouco e só dei um sorriso. Não lembro o que disse, mas na minha cabeça só passava “empurrar é pra você seu sedentário”. Quando cheguei no topo e olhei pra trás lembrei do barrigudo. No fim ele me ajudou a subir com mais vontade.
A boca do inferno
Ainda era verão, mas o tempo estava um caos. Chegamos à fenda que marca o início da descida com uma neblina infernal. A estrada passa entre duas rochas com 50 metros de altura e não tem mais que dez de largura. Com o branco que estava no ar, não dava para saber onde estávamos indo. Era como ser engolido por uma garganta. Até porque a inclinação ali é grave. Sentia os alforjes me empurrando ladeira abaixo.
No meio dessa primeira descida, achei que tinha errado o caminho porque não via mais estrada pela frente. Assim que se passa pelas rochas aparece uma proteção dando a impressão de que ali é apenas um mirante, como mencionou o barrigudo. Como já estava ali, fui até o fim. Só quando cheguei à proteção foi que percebi a estrada continuando à direita praticamente sob o meu pé. A inclinação ficou mais grave ainda. A impressão era que os alforjes iriam se soltar e passar por entre os meus braços ou até ao lado da cabeça. Desci mais uns metros e parei para ver como Regina estava se virando, pois já estava ouvindo palavrões sem poder olhar para trás.
Quando consegui olhar, ela estava com os dois pés no chão controlando a bike e dizendo que não ia dar. Descia a meio passo por vez, queria voltar. Indiquei pra ela olhar pra cima pra sentir o que seria voltar, ela resolveu continuar seus passinhos até passar aquela primeira rampa que parecia ser a pior que íamos ter. Até que foi, mais à frente, a estrada volta a ser de saibro e ainda aparecem umas rampinhas nervosas, mas nada como a garganta que em dias de chuva assume um ar infernal. O pedal passou a render e com ele a chuva também ficou mais graúda. Isso fazia a bike e todo o resto, incluindo os ciclistas, mudarem de cor para um tom barro puro. Com o estresse da descida sob água, a canseira pegou mais cedo. Ainda faltavam uns dez quilômetros para Grão-Pará quando encontramos uma pousada. Sem o menor pudor de encurtar a meta do dia, paramos e curtimos a tarde e uma boa galinhada com polenta ao lado de uma família catarinense.
Termas
De Grão-Pará dá pra escolher vários caminhos. Para o sul há várias estradas de terra que levam ao que hoje forma o circuito Acolhida na Colônia. Mas quando vimos uma indicação que Termas de Gravatal estava a meio caminho de Tubarão, achamos que seria melhor optar por um dia no quentinho de piscina de águas termais para tentar tirar o gelo dos últimos dias.
O projeto inicial era chegar nesse quarto dia em Tubarão, para alcançar o mar no quinto e retornar a Curitiba no mesmo dia. Mas como encurtamos o pedal em dois dias depois de tanta chuva e lama, desencanamos do mar. As águas termais substituíram bem o mar. Até porque o clima não estava com cara de verão. No quinto dia, enrolamos um pouco no hotel pra secar mais as roupas e esquentar o esqueleto. Chegamos a Tubarão no meio da tarde para retornar a Curitiba à noite.
Como teste para Santiago, essa viagem não poderia ter sido melhor. Muitas das condições que enfrentamos no teste foram bem similares às que enfrentamos em Setembro na Espanha. Mas o melhor foi ver que a dupla daria certo.
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