Já pensou em pedalar por dias numa praia sem interrupções?
Ao longe vejo o que parece um fusca vindo na direção contrária. É meio arredondado e bem distante. Já estou na metade do meu segundo dia de pedal pela praia do Cassino e desde a tarde do dia anterior não vejo algo parecido com um ser humano pela frente. Nos últimos 70 km eu só tenho a companhia de baleias, pinguins e muitas tartarugas. Todos mortos e encalhados na praia. Mesmo no farol do Albardão não achei ninguém. Só reabasteci de água e continuei. Tinha em mente que teria que passar o concheado na maré baixa e por achar que estava atrasado não perdia muito tempo nas paradas.
O fusquinha à frente cresceu um pouco, mas parecia não se mover. Depois de dois dias pedalando só por uma praia que parece a perfeita representação do infinito, as nossas percepções ficam meio embaralhadas. O que parecia um pequeno carro, ao chegar mais perto virou, como num passe de mágica, uma tartaruga de pente. Mais uma sem vida, mas esta parece que foi há pouco tempo, pois a cor ainda estava escura e por isso a confundi com um fusca na distância.
A praia do Cassino é a última praia do Brasil antes do Uruguai (se for falar com um gaúcho, diga que é a primeira, pois eles dizem que o Brasil começa pelo sul). É a maior praia do mundo com 220 km de areia plana e quase toda firme. Começa na entrada do porto de Rio Grande e segue até a barra do rio Chuí, divisa com o Uruguai. Apesar de não ter um rio só para atravessar, ela oferece alguns desafios.
O concheado é o que faz as vezes de um rio a ser atravessado. Funciona como um mataburro pra bike e tem alguns quilômetros. Passar ali, só na maré baixa. Nessa esquina do mar, as conchas são depositadas na areia que, por sua vez, é depositada por cima pelo vento. Resultado, um castelo de cartas que desmorona assim que a roda da bike encosta e afunda até o cubo.
O segundo desafio é o vento. No fim do Brasil venta e muito. A imagem que tenho do vento é olhar para o chão e ver grãos de areia se desprendendo formando uma nuvem junto às rodas da bike. Era como estar pedalando no céu. Colocando de maneira mais matemática, a magrela chegou a 19 km/h comigo em pé fazendo as vezes de vela, sem pedalar. Pedalar contra o vento nesse canto de mundo só para insanos. Você tem que acertar a época do ano e só sair com previsão de vento nordeste para dois dias. Isso geralmente acontece no verão e o pedal vai para o sul, em direção ao Chuí.
Parti da cidade de Rio Grande num dia de céu azul de um feriado de Novembro. O começo da praia fica junto aos molhes de acesso ao porto. Essas obras da engenharia avançam cerca de 5 km mar a dentro para garantir um canal para a entrada de navios. Numa das margens há carrinhos sobre trilhos empurrados pelo vento que levam turistas a uma vista privilegiada.
Com o vento nordeste soprando a toda, comecei a pedalar tranquilo, vendo que com pouco esforço fazia muito. Relaxei e aproveite o passeio. Já era meio dia e ainda estava na altura do centro do balneário Cassino que fica cerca de 10 km praia abaixo. Almocei e bati papo com um pessoal numa barraca. Toda essa festa inicial me fez atrasar a programação geral.
Só me dei conta de que estava atrasado quando, lá pelas cinco da tarde, ficou difícil achar areia dura na praia pra rodar tranquilo. Tinha luz, mas ao fugir das ondas eu enroscava na areia fofa. Ficou irritante pedalar. Nesse ponto estava próximo ao primeiro farol da praia. A programação era chegar ao segundo farol, o Albardão, onde tem água e um gramado e, com sorte, algum funcionário da marinha.
Como não tinha o que fazer, montei acampamento. Achei um morrinho para me esconder e tentar não ter a barraca levada pelo vento. Fiquei meio tenso ao me dar conta que só tinha feito 70 km no primeiro dia. Pra apimentar a tensão, acordei várias vezes à noite achando que estava chovendo. Como não tinha o que fazer, tentei relaxar. O barulho de chuva nada mais era do que areia batendo no nylon da barraca. Ao primeiro sinal do alvorecer, levantei acampamento e só fui tomar café da manhã, uns 20 km abaixo.
O vento soprava mais forte ainda com o tempo nublado. Mas como continuava a empurrar na direção que eu precisava, aproveitei e pedalei mais forte ainda. Cheguei ao segundo farol no meio da manhã para minha tranquilidade. Com o que ainda restava do dia, percebi que o atraso havia sumido. A frente só mais um desafio, atravessar o concheado.
Só pisando para entender o que é um concheado. Como é um aglomerado de conchas, imaginei que seria mais duro que a própria areia. Foi exatamente o contrário. A roda da bike afundou até o cubo. Mais do que depressa me pus a pedalar com força de novo para não correr o risco de ficar preso entre o mar e as conchas sem areia dura pra rodar. Foram uns 8 km tensos até o fim do trecho. Depois que passei, até que gostei da brincadeira.
Quando me dei conta de que a faixa de areia dura alargou, foi um alívio geral. Daí em diante, voltei a curtir o vento, a areia voando mais rápido que a bike e até brinquei de “kitebike” Eu fazia as vezes do kite. Logo após uns sinais, humanos voltaram a aparecer e senti uma felicidade enorme ao rever um ser como eu pescando na praia. Tinha voltado ao mundo dos mortais.
Com o tempo fechado, o balneário no fim da praia parecia uma cidade fantasma. Pelas minhas informações tinha mais uns 20 km à frente até o rio Chuí. Fui brincando de correr ao vento acompanhando as nuvens de areia que rolavam sobre a praia. Quando me dei conta o horizonte mudou, ao longe uma parede apareceu à minha frente. Era o fim da praia.
Foram mais 10 minutos até chegar ao fim do Brasil. Encostei a bike no monte de concreto fazendo papel de pedras e escalei a montanha pra dar um oi pro Uruguai. Estava só, nem gaivota tinha coragem de sair naquele vento. Percebi que tinha um sorriso de satisfação no rosto, mas não deu pra fazer muita festa. A cidade do Chuí fica 8 km pra dentro do continente e era lá o fim da viagem de verdade.
Durante os 220 km da praia, fiquei apreensivo duas vezes, mas em nenhuma delas me irritei com os percalços. Agora, nos 8 km de asfalto até a cidade, eu praguejei muito. Primeiro porque, para voltar 500 metros na praia até a saída, tive a sensação de ter passado pelo inferno devido ao vento contra. Quase desci e empurrei. Depois, na estrada, ele ficou de lado e quase me derrubou duas vezes. Foram os quilômetros mais longos de toda a viagem.
A cidade do Chuí é metade Uruguai e metade Brasil. A avenida que corta a cidade faz a divisa. Fiquei do lado brasileiro porque foi a primeira pousada que achei, mas fui comer e fazer comprinhas do lado uruguaio onde tudo é mais barato. O melhor da cidade é o churrasco e umas lojas duty free. Mas não se anime muito nas compras, pois, mesmo sem ver alfândega no meio da rua, ela existe; está a 20 km na estrada de saída. É a única opção além da praia. Se não quiser voltar pedalando contra o vento carregando excessos de compras, controle-se, pois eles fiscalizam tudo.
Comprei passagem para Porto Alegre na tarde seguinte para chegar a tempo de engatar em outro ônibus para Curitiba. Escolhi o da tarde para poder almoçar uma última parrilhada. Era muito boa e barata. E assim segui de volta, de barriga cheia e alma lavada por ter pedalado a maior praia do mundo.
Quando ir: Verão é o ideal para a travessia. Mesmo assim é preciso ter uma previsão de tempo bom com vento nordeste.
O que levar: Barraca, reservatório para 3 litros de água, anorak ou corta vento e comida fria. Com o vento acender fogareiro é quase impossível.
Importante: Levar a nota fiscal da bike para apresentar na aduana caso seja requerido.
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